Antes de ler o conto, assista ao clipe abaixo ou então leia o conto ouvindo a música:
“Eu preciso praticar.” Esse pensamento não lhe saia da cabeça desde que acordou. Talvez fosse o fato de ter passado o dia só já que sua esposa passara a noite passada no hospital e o dia inteiro cuidando do neto para que o genro deles pudesse ficar no hospital. Ou talvez fosse o fato de estar limpando o antigo quarto de sua filha que, apesar de agora servir como um quarto de hóspedes, ainda estava repleto de lembranças da menina, da adolescente e da mulher que costumava passar a maior parte dos seus dias ali. Fosse qual fosse o motivo, ele estava se sentindo estranhamente nostálgico naquela noite, com saudades de um tempo que jamais voltaria.
Era nisso que Vítor pensava quando encontrou o antigo
toca-fitas dela: pequeno, cor-de-rosa choque, cheio de adesivos e com uma fita
ainda dentro. Ligou o aparelho na tomada, apertou o play e o silêncio do quarto
foi preenchido pela melodia de “Sonhar é desejar”.
Ele reconheceu a fita imediatamente, era uma mistura das músicas instrumentais
preferidas dela dos clássicos antigos da Disney. Ele gravou para a filha anos atrás
e ela sempre colocava para tocar quando havia algum baile em seu castelo
imaginário. A música o transportou para aquela época e, mergulhado em suas
memórias, estendeu os braços no ar e se imaginou dançando com ela pelo quarto
como fizera tantas outras vezes.
Sua fantasia foi interrompida com o toque de seu celular.
Ao ver no visor o nome de quem lhe ligava, seu coração parou de bater por um instante
e ele atendeu já imaginando o pior:
– Alguma coisa aconteceu?
– Ella está bem, não precisa se preocupar. – A voz
cansada do outro lado da linha o tranquilizou. – É que eu deveria passar a
noite aqui, mas a babá acabou de me ligar dizendo que Igor está com febre e, pra
completar, acordou, não viu a avó e começou a chorar chamando por mim e pela
mãe. Será que o senhor poderia dormir no hospital no meu lugar hoje para que eu
ficasse com ele?
Mesmo sem vê-lo, Vítor percebeu que o genro parecia à
beira das lágrimas. Essa situação estava sendo difícil para todos que a amavam,
mas estava sendo particularmente pior para o jovem marido que precisava se
dividir entre o trabalho, a esposa, que estava internada há meses, e o filho.
Por “sorte”, ele agora estava de férias, mas além da esposa doente, seu filho
havia gripado há alguns dias e estava inconsolável porque isso o impedia de
visitar a mãe no hospital. Gustavo estava chegando ao seu limite emocional, mas
lidava com a situação o melhor que podia e sentia-se grato pelo apoio e suporte
de sua família.
– Claro que sim, meu filho. – Vítor respondeu. – Vá
cuidar do seu filho que da minha filha eu tomo conta hoje.
– Muito obrigado. Vou esperar o senhor chegar então.
–
Tudo bem. Tchau.
–
Tchau.
Vítor
desligou o telefone, trocou de roupa, escreveu um bilhete para a sua esposa
explicando a situação e saiu de casa. Em poucos minutos chegou ao hospital,
Gustavo lhe passou as informações necessárias, se despediu e saiu do quarto em
seguida deixando-o a sós com Ella. Ele sentou-se no sofá e fitou carinhosamente
a filha profundamente adormecida, estava tão cansado que acabou adormecendo
também. Despertou algumas horas depois e percebeu que Ella já estava acordada.
–
Dormiu bem, Belo Adormecido? – A voz entregava o cansaço que o sorriso tentava
esconder.
–
Sim, na medida do possível. Como você está se sentindo? – No estado dela, ele
sabia que essa era uma pergunta boba, mas a fazia toda vez que ia ao hospital
porque, no fundo, tinha esperanças de ouvir uma resposta diferente.
–
Cansada como sempre, mas estou um pouco melhor. As dores hoje estão mais
suportáveis. Não sabia que o senhor viria dormir comigo hoje, pai. Tinha
entendido que Gustavo ficaria aqui direto. Cadê ele, a propósito? Aconteceu
algo com Igor? – A preocupação em sua voz era visível por isso ele tratou logo
de tranquiliza-la.
–
Não aconteceu nada de mais. Elena passou o dia com ele e o colocou para dormir
antes de voltar para casa, mas ele acordou pouco depois que ela foi embora. Aí,
como não viu a avó, começou a chorar chamando por você e pelo pai. – Ele achou
melhor omitir que o menino estava com febre, não queria preocupá-la mais ainda.
– A babá não conseguiu acalmá-lo e Gustavo achou melhor ir pra casa, por isso
me ligou pedindo para eu vir aqui.
–
Entendi. – Ella fechou os olhos momentaneamente para evitar que as lágrimas
caíssem enquanto pensava no quanto desejava poder abraçar seu filho e
consolá-lo. Sabendo que isso era impossível decidiu se concentrar no que ainda
podia fazer. Abrindo os olhos ela disse: – Pai, o senhor poderia me fazer um
favor?
–
O que você quiser, minha querida.
–
Dança comigo?
–
Agora? Eu não acho que isso seja uma boa ideia...
–
Estou me sentindo um pouco melhor hoje – ela o interrompeu – e eu prometi para
o meu menino que dançaria com ele em sua formatura. Faz muito tempo que eu não
danço e a festa é daqui a uns meses, eu preciso praticar. Por favor, ensaia
comigo?
Ele
nunca conseguia dizer não quando ela lhe pedia isso, mesmo quando chegava do
trabalho exausto, carregando o peso do mundo em seus ombros e ela vinha
correndo pulando em seu colo pedindo para ensaiar porque haveria um baile no
castelo. Não importava o quanto queria descansar, ele sempre cedia e dançava
com ela. Não foi diferente dessa vez.
Ella
sentou-se na cama e Vítor, com todo cuidado, calçou-lhe as pantufas
hospitalares. Depois, seguindo suas instruções, pegou seu celular, procurou “Um
sonho é um desejo” e colocou para tocar. Então ele a abraçou e a ajudou a se levantar.
Ela estava tão fraca que ele precisou colocar as duas mãos em sua cintura para
mantê-la firme e só então ele percebeu o quão sua filha havia emagrecido. Ela
estava tão leve que isso o fez lembrar novamente de quando ela era criança e
ele praticamente a carregava enquanto dançavam. Ela se aproximou, encostou a
cabeça em seu peito e eles ficaram assim, dançando silenciosa e lentamente sem
perceberem o tempo passar.
De repente ele sentiu
o corpo dela pesar e as máquinas às quais ela estava conectada começaram a
apitar, ele chamou o seu nome, mas não obteve resposta. Desesperado, gritou por
socorro enquanto a colocava na cama. Nem precisou apertar o botão que chamava
por ajuda porque a médica de plantão e as enfermeiras adentraram o quarto
imediatamente após ouvirem seus gritos. Ella não respirava então elas começaram
os procedimentos para reanimá-la. Sem poder fazer nada, Vítor levantou os olhos
para fazer uma prece, mas percebeu o relógio na parede e foi então que se deu
conta de que elas não poderiam mais salvar sua menina. Era meia-noite, sua
Cinderela se fora.
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